Uma das principais revistas semanais de circulação nacional acaba de publicar uma reportagem sobre o fato de que, durante a Ditadura Militar no Brasil, evangélicos foram denunciados por líderes de suas denominações aos órgãos de repressão e foram torturados, tendo, alguns, inclusive, que fugir para exílio.
Esses são tristes fatos, e se constituem em uma página lamentável da história do Protestantismo no Brasil, conquanto esse “dedodurismo institucional” não nos tenha sido peculiar, mas, na época – polarizada e acirrada, no clima da “Guerra Fria” e da “Doutrina da Segurança Nacional” –, foi algo de certa forma generalizado, que ocorreu em repartições, empresas, vizinhanças e, até, no contexto de famílias, em uma atmosfera de insegurança, delação e desaparecimentos. No caso das igrejas evangélicas essas práticas nefastas se deram em vários casos, mas numericamente, de limitada expressão no universo religioso em seu conjunto.
Como sabemos, a tortura foi uma prática multissecular contra os escravos negros de origem africana, tantas vezes com requintes de perversidade, e, sempre, e até os nossos dias, uma realidade contra presos comuns, especialmente os “típicos”: jovens pardos pobres heterossexuais (semi)analfabetos, inclusive menores, embora seja oficialmente considerado um crime hediondo. As elites nunca se importaram com a tortura dos presos comuns. A grita somente veio a acontecer porque os presos políticos torturados eram oriundos dos estratos médios e superiores da sociedade.
Com a censura férrea aos meios de comunicação, o grosso da população ignorava o que acontecia nos porões do regime, ainda por cima submetida à propaganda do “Brasil Grande”, e qualquer outra informação somente nos vinha pela escuta de rádios de ondas curtas.
A Igreja Romana, por uma nota oficial da CNBB saudou o Golpe de 1964, enquanto a então reduzida população evangélica ficava entre a sua valorização histórica da Democracia, o temor da perseguição religiosa (realmente existente) nos países Comunistas, e a crença de que o Golpe era algo transitório na retomada democrática.
Após o Ato Institucional de 1968, e o surgimento da Teologia da Libertação, em 1971, foi-se abrindo um fosso entre a Igreja Romana e o Regime, e esse procurou cooptar os protestantes. Embora a maioria dos políticos reformistas da América Latina não tivessem nada de marxistas, as ditaduras militares do continente, para se legitimar, justificar a repressão e amedrontar a população, os generalizou como “subversivos”, impedindo, na realidade, uma ruptura da dominação oligárquica em direção a democracias não somente jurídicas e políticas, mas também econômicas e sociais.
Quanto aos grupos ditos “liberais-ecumênicos” das igrejas, que foram, então, denunciados ao regime (especialmente jovens) já vinha se dando uma ruptura desses com a ortodoxia evangélica, que era uma marca do nosso protestantismo, debilitando os seus vínculos com as instituições e as comunidades, daí a escassa repercussão dessas prisões por delação junto às bases dos fiéis. Aqui também se deram casos em que a “esquerda” teológica e política da igreja chegou a levantar suspeitas ou fazer acusações infundadas sobre pretensos “informantes”, que, de fato, não eram, e que ficaram com a pecha, maculados em sua imagem.
Como disse Churchill: “a democracia é o pior dos regimes, salvo todos os demais”, as ditaduras (de direita ou de esquerda) não se justificam, e o seu saldo é sempre negativo, mas, não podemos, por outro lado, nos contentar com uma “democracia para alguns” privilegiados, em sociedades de injustiça e marginalização social. O equilíbrio entre liberdade e justiça social nem sempre tem sido fácil, e, quase sempre, historicamente, o avanço de um item implicado em atrofia do outro.
Encaremos os fatos históricos como realmente foram, mesmo que nos envergonhem. Aprendamos com suas lições, para que não se repitam, e reafirmemos o nosso compromisso com os valores do Reino de Deus na História, todos eles, e não apenas alguns...
Quando o Golpe de 1964 se deu, eu era um jovem de 19 anos, com apenas cinco meses de evangélico professo em uma igreja de bairro, de escassas informações sobre esse novo mundo religioso que eu entusiasticamente adentrava. Sobre a Igreja e o Regime tive muito que aprender, me deparei com muitas surpresas, e, ao longo dos anos, fui amadurecendo e me posicionando, pagando preços, mas sendo também testemunha do fechamento de um ciclo, mesmo em direção à “era das incertezas” e dos novos (e velhos) desafios que – externa e internamente – temos que enfrentar como Igreja.
Recife (PE), 17 de junho de 2011,
Anno Domini.
+Dom Robinson Cavalcanti, ose
Bispo Diocesano
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