James C. Fenhagen - Deão do Seminário Geral de Nova York
O autor de novelas americano Walker
Percy põe na boca de um de seus personagens da novela a SEGUNDA VINDA o
seguinte comentário sobre a situação religiosa na cultura contemporânea de
seu país:
"Mário é um episcopal conservador que não quer mudanças na igreja. Leshe e
Jason são cristãos batizados pelo Espírito Santo e não dão importância alguma
tanto à liturgia como aos sacramentos, a não ser que levem a um encontro
pessoal com Jesus Cristo. Ed e Marge são da Califórnia e estão sempre prontos
a abraçar a primeira moda que aparecer. Jack, o ministro, não se interessa
muito pelo sacerdócio feminino ou pela nova liturgia, mas está sempre presente
nas reuniões ecumênicas do Oriente Médio e da América Latina. Além disso, as
suas roupas prediletas são o tênis e o abrigo esportivo. Kitty acredita na
astrologia e no horóscopo. Yamatuchi é Testemunha de Jeová e acredita que é
um dos 144.000 que vão sobreviver ao Armagedom final. A esposa de Yamatuchi é
espírita e acredita na reencarnação. Será essa época uma época de crenças, de
um renascimento de fé após um período de materialismo de massa, de ateísmo,
agnosticismo, liberalismo? Ou é uma época de loucura em que todos crêem em
tudo? O que é que é verdadeiro?”
Este comentário sobre a confusão que
existe entre as religiões na América fortalece em mim a convicção daquilo que
está no centro do modo como a Igreja Episcopal tem compreendido a fé cristã.
De fato, há uma diferença entre como você entende a fé cristã e como a
tradição a conserva.
Em nosso mundo pluralista, procuramos
omitir as diferenças denominacionais devido ao nosso desejo, compreensível,
de nos mostrarmos caridosos para com o próximo e também abertos a
manifestações de fé diferentes da nossa. Eu compartilho desse espírito, mas
me preocupa o fato de que este desejo de nos mostrarmos abertos aos outros
pode nos afastar daquilo que a nossa tradição considera verdadeiro. Devo
comprometer-me com uma visão ecumênica da Igreja, mas não a ponto de negar
aqueles aspectos da minha própria tradição que, creio, devem ser
testemunhados com convicção como parte de qualquer diálogo.
Resumindo, creio que há, de fato, um
modo anglicano de ser que tem muito a contribuir para toda a igreja e que
devemos testemunhar com convicção. Há três elementos nesta tradição que eu
gostaria de mencionar aqui. Faço isso, sabendo que alguns desses elementos
nós compartilhamos com outras denominações, mas que no anglicanismo têm uma
forma peculiar de se manifestar.
COMPREENSIVIDADE. Em primeiro lugar, desde o tempo de
nossa reforma no século XVI, a Comunhão Anglicana tem se comprometido com uma
postura de compreensão e não de uniformidade doutrinária. Isso envolve a capacidade
de manter reunidas pessoas que têm posições aparentemente opostas. É uma
posição que permite um debate teológico consistente, mas que outros acham
difícil de entender. Uma padre católico romano certa vez me perguntou: “Onde
encontro escrito claramente o que vocês anglicanos acreditam?” minha resposta
foi: “Na Bíblia, nos Credos e no modo em que adoramos. Está tudo lá, mas só
pode ser compreendido na maneira de viver, na caminhada”. E eu acredito nisso
até hoje. William Wolfe que ensina teologia no Seminário Teológico de
Cambridge, Massachusetts, fala da tradição anglicana como sendo um diálogo
orientado litúrgica e pastoralmente para quatro sócios: católicos,
evangélicos, advogados da razão e da experiência. E a palavra “sócio”, diz
ele, é escolhida de maneira deliberada para enfatizar a necessidade de cada
aspecto de nossa tradição permanecer cooperando com outras.
Este tipo de compreensividade produz
um modo de entendimento de fé cristã. Significa que levamos a sério a
necessidade de uma investigação crítica e intelectual em resposta a uma
verdade apresentada, venha de onde ela vier. Uma das maiores ameaças para que
a fé que encontramos no mundo de hoje é o anti-intelectualismo dogmático, que
se esconde atrás de um aparente fervor religioso. Há uma diferença entre
convicção e dogmatismo. A diferença é a fé. Jesus não oferece certeza
absoluta. Ele nos oferece um relacionamento de incrível intimidade e poder.
A Igreja nos oferece uma tradição e o
mundo nos oferece mudanças. Fé envolve viver a tensão entre três pólos: uma
relação pessoal com Jesus Cristro, a tradição da Igreja e as mudanças que
refletem o andamento do mundo, ao mesmo tempo em que permanecemos disponíveis
ao surpreendente e ao mistério de tudo quanto não conhecemos e alertas ao
movimento de Deus naquilo que é novo. Se nosso relacionamento com nosso
Senhor Jesus Cristo é sério, não precisamos temer as difíceis questões que o
mundo nos apresenta. Não precisamos temes incertezas ou novas idéias ou mesmo
dúvidas, porque Jesus Cristo é nossa esperança e nossa promessa, ontem, hoje
e amanhã. Nossa igreja tem lutado denodadamente para manter essa posição de
compreensividade durante séculos. Não é fácil nem sem certo sofrimento, mas
dou graças a Deus por aquilo que Ele nos tem possibilitado testemunhar.
SANTIDADE PESSOAL. No segundo lugar, como anglicanos,
oferecemos ao mundo uma tradição espiritual que considera a santidade pessoal
como algo que surge do inter-relacionamento entre participação litúrgica,
solidão e compaixão. Todos esses três elementos são necessários e
interdependentes. É uma tradição espiritual que entrelaça um interesse por
liberdade pessoal com ênfase na beleza, na alegria e no temor, uma tradição
enriquecida por Juliano de Norwich, George Herbert, Lancelot Andrewes, Jeremy
Taylor e Evelyn Hunderhill.
Nosso maior tesouro espiritual é o
LOC, revisado muitas vezes desde a sua criação, e no entanto, contém até hoje
uma caminhada feita por muitos elementos e formada pela experiência de
milhões de pessoas.
Ser uma igreja litúrgica, entretanto,
envolve mais do que ter um livro. É uma maneira de louvar que é
essencialmente dialogal, onde cada pessoa tem um lugar e uma parte ativa. Nós
nos reunimos para adorar não só para nosso próprio proveito, mas também em
favor daqueles que nunca oram ou que nunca passaram pela porta de uma igreja.
Esse senso de ser um igreja intercessora a favor dos outros está
profundamente enraizado em nossa tradição e é mostrado na nossa compreensão
da Santa Eucaristia, onde compartilhamos do auto-oferecimento de Cristo em
favor do mundo. Esta compreensão de adoração não depende de famosas
celebridades ou pregadores carismáticos, mas do trabalho do povo, onde
clérigos e leigos realizam a sua parte e fazem jus ao seu ministério.
Um dos fenômenos de nosso tempo tem
sido o surgimento do interesse pelas religiões orientais e o lugar da solidão
na vida humana.
Os jovens abandonaram nossas igrejas
porque não encontram aquilo que sentem ser tão profundamente necessário.
Para os anglicanos o restabelecimento
de nossa tradição envolve também a restauração de nossas raízes espirituais,
raízes nutridas pela liturgia, mas aprofundadas e expandidas pela solidão. É
somente desse modo que nos tornaremos pessoas mais compreensivas e mais
preocupadas com as necessidades do povo.
Thomas Merton certa vez observou que
a forma de violência mais perversa do mundo contemporâneo é o ativismo e o
excessivo trabalho. Segundo o conhecido monge trapista, “a correria e as
pressões da vida moderna são uma forma, talvez e a mais comum, de violência
da vida. Permitir-se ser envolvido por uma multidão de interesses
conflitantes, render-se a pedidos demasiados, comprometer-se com projetos
gigantescos, querer ajudar a todos em tudo é sucumbir à violência. Mais do
que isso, é cooperar com a violência.
A agitação do ativista neutraliza seu
trabalho pela paz. Destrói sua capacidade íntima de paz. Destrói os frutos de
seu próprio trabalho, porque mata a raiz da sabedoria interna que faz o
trabalho ser frutífero”.
Estas palavra proferidas por um monge
trapista, que por sua vez estava citando um “quaker”, refletem uma linha de
pensamento profundamente ligada à nossa tradição. É uma tradição de liturgia,
de solidão e de compaixão que fala para uma fome profunda em nosso mundo, uma
fome que vemos em nós também.
SANTA MUNDANIDADE. Finalmente, gostaria de considerar
importante um aspecto da tradição anglicana que pode ser descrito como “santa
mundanidade”. É uma afirmação de vida, em vez de uma negação do prazer. Chama
as pessoas para a fé não por medo ou culpa, mas a partir de uma visão de Deus
que provoca uma resposta em vez de exigi-la. É um modo de vida modelado pelas
palavras do primeiro libro da Bíblia: “E Deus criou o mundo e viu que era
bom”. Isso não quer dizer que não levamos a sério o pecado humano, mas que a
nossa ênfase está naquilo que a nossa redenção em Cristo torna possível.
Somos uma igreja sacramental que vê a
presença do amor de Deus nas coisas mais mundanas. Nossa tradição considera a
perfeição, sexualidade e o prazer humano não como um fim em si mesmos, mas
como reflexos do amor de Deus. É por isso que quando desvirtuamos ou
empregamos mal as coisas que Deus nos dá as conseqüências são tão sérias.
Estamos rodeados no mundo por forças
que procuram nos motivar, jogando as nossas culpas, os nossos temores, a
nossa compreensível frustração e preocupação com aquilo que ocorre ao nosso
redor. Há dias em que gostaríamos de gritar bem alto: “Mundo, pare, eu quero
descer. Esse trem não me serve”. Há dias em que parece que somente as
respostas simples ou os inimigos claramente definidos satisfazem a agitação
que sentimos. Mas, entregar-se a esses sentimentos é negar uma coisa que é
fundamental em nosso batismo.
Somos filhos da promessa. Mesmo no
meio da morte podemos proclamar a esperança. Somos parte de uma tradição que
afirma que a vida é mais rica quando vivida em favor dos outros. É uma
tradição que se recusa a viver por medo ou coerção, não importa quão nobre
seja a finalidade; e escolhe viver em liberdade e em amor em resposta ao que
Deus nos tem dado. Isso é santa mundanidade.
Henri Nouwen conta uma história
comovente que ilustra o que isso significa: “Era uma vez um velho que
costumava meditar bem cedo, todas as manhãs, debaixo de uma grande árvore na
margem do rio Ganges, na Índia. Uma manhã ele viu um escorpião boiando
indefeso na correnteza do rio. De repente, o escorpião foi levado pela
correnteza para perto da árvore e ficou preso entre as raízes que se
estendiam para dentro do rio. Lutava desesperadamente para se libertar, mais
cada vez mais se enrolava. Quando o velho viu isso, imediatamente estirou-se
ao longo das raízes e procurou salvar o escorpião que se afogava. O animal
virou-se e o mordeu. Instintivamente, o homem retirou a sua mão. Mas tendo
retomado o equilíbrio, mas uma vez esticou-se para salvar o agonizante
escorpião, e cada vez que o velho chegava perto, o escorpião o mordia tão
furiosamente que as mãos do velho ficaram inchadas e ensangüentadas, e sua
face se contorcia de dor. Naquele momento, alguém que passava, vendo o velho
estirado sobre as raízes, lutando com o escorpião gritou: “Oh! Velho idiota,
estás louco? Somente um louco arriscaria a sua vida para salvar esse animal
mal-agradecido!” Vagarosamente o velho virou sua cabeça e olhando calmamente
bem nos olhos do estranho, disse: “ Amigo, porque é da natureza do escorpião
morder, devo eu abandonar a minha própria que é a de salvar?”
Bem, essa é a questão. Por que
devemos abandonar a nossa natureza de ser compassivos, de pessoas que lutam
pela vida, mesmo quando somos feridos por um mundo ferino? Devemos nos
entregar para um fundamentalismo bíblico e um falso moralismo porque alguém
nos diz que é isso que faz a igreja crescer? Por que deveríamos deixar de ser
povo, que sempre está pronto a se dar a si mesmo em favor dos outros, só
porque o mundo nos diz: “protejam-se e retirem-se, porque vocês vão se
machucar?”
Como membros da Igreja Episcopal
Anglicana, pertencemos a uma família universal que compartilha de uma herança
comum. Em nosso básico compromisso com Jesus Cristo somos iguais a todos os
cristãos, mas em nossa caminhada: uma tradição de compreensividade, uma
santidade pessoal forjada por uma liturgia comum e um espírito que sempre
afirma a vida. Os episcopais anglicanos compartilham de outros tesouros
também, mas estes falam com graça e poder para um mundo dividido e
amedrontado.
Traduzido pelo Rev. Carlos Getúlio Hallberg - Reitor do SETEK – Porto Alegre - RS
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quarta-feira, 13 de junho de 2012
MANEIRA DE SER DOS ANGLICANOS.
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